O que é ética?
Ética é um conjunto de valores e preceitos que direcionam o comportamento de uma sociedade. Como estamos mudando todos os dias e lidando com novas situações a todo momento, não poderíamos criar uma lista de valores de pode ou não pode. Logo, é mais correto que tratemos os valores éticos como princípios.
Ética tem muito a ver com liberdade de escolha. Por isso que os comportamentos dos animais não podem ser levados em consideração do ponto de vista ético, porque eles não tem escolha de se comportarem da maneira que se comportam. Eles são regidos pela natureza, escravos do seu instinto. Já nós não. Nós temos a opção de escolher e decidir nossa conduta todos os dias e a todos os momentos. Esse poder de decisão é o que define nossos padrões éticos.
Um ponto importante é que não existe ética individual. A ética são os valores coletivos de um grupo e uma sociedade. Diferente da moral, que essa sim é individual. Podemos dizer que a moral é a prática da ética. Tendo a ética como princípio coletivo, a moral se torna uma conduta formada pela escolha individual de exercer corretamente os princípios éticos definidos pela sociedade, ou simplesmente ignorá-los.
Ética no mundo digital
Nunca a tecnologia esteve tão presente na vida das pessoas como atualmente. A sociedade é impactada de forma brutal desde redes sociais até aplicativos de carona. Nosso comportamento cotidiano tem mudado drasticamente por influência de novas maneiras de se comunicar, consumir e se relacionar.
Quando nos falamos sobre ética digital, nós nos referimos ao campo que se preocupa com o poder que a tecnologia tem de influenciar e direcionar a visão política, social e moral da sociedade.
Na realidade é que o impacto dos serviços e mercados criados por meio da tecnologia é ainda desconhecido. Será que instagram deixa jovens mais depressivos? Será que o Twitter e Facebook estão contribuindo para um tipo novo de déficit de atenção? Será que o serviços da gig economy promovem um novo tipo de escravidão?
E o que isso tem a ver com Produtos Digitais?
Podemos dizer que ética em Produtos Digitais é só uma vertente da ética digital. É a partir dos Produtos Digitais que vemos o comportamento das pessoas e consequentemente da sociedade mudando. Por isso um Product Manager é um profissional tão importante hoje.
Um Product Manager, que faz a junção das partes tática e estratégica de um produto, tem um papel de alta responsabilidade, ao fazer a mediação entre negócio e usuário. É uma responsabilidade ingrata, que envolve tomar decisões que podem ser boas para o negócio, mas talvez não para o usuário.
Pontos inerentes aos produtos digitais que o PM (e o time) deveriam prestar atenção
Existem importantes pontos de vista que devem ser observados pelos times de empresas de produtos. Só pra citar alguns:
- Promoção de informações erradas/mentirosas;
- Criação de algoritmos com vieses;
- Funcionalidades que incentivam o vício do uso;
- Centralização da atenção dos usuários (sobretudo crianças);
- Superficialidade das relações sociais;
Como fazer os usuários engajarem mais no produto, sem utilizar técnicas de gatilhos emocionais ou mentais? Como criar algoritmos neutros e livres de qualquer viés, seja de forma proposital e direcionada, ou por falta de atenção? Como criar serviços que não incentivem a superficialidade das relações?
Podemos avaliar a ética digital de uma camada mais macro, onde não apenas os indivíduos são impactados, mas a sociedade e os mercados também são altamente influenciados. E aqui os Produtos Digitais são apenas mais um meio de impacto, se misturando entre dezenas de outras formas.
A Ethical OS (falo mais sobre eles a frente), tem 8 pontos importantes, que eles chamam de Zonas de Risco, que resumem bem o que podemos abranger no nosso dia a dia:
- Verdade, Desinformação e Propaganda;
- Vício e Economia da Dopamina;
- Economia e Desigualdade;
- Ética de máquina e Vieses de algoritmo;
- Estado de vigilância;
- Controle de dados e monetização;
- Confiança Implícita e Compreensão do Usuário;
- Ódio e Autores Criminosos (no inglês são Criminal Actors, traduzi livremente);
Vemos isso muito claramente se lembrarmos do surgimento da economia do compartilhamento. Quando o AirBnb, Uber e outros surgiram, imediatamente todos acharam um ótima ideia, dada às claras vantagens economicas e comportamentais para as pessoas que usam e oferecem serviços.
Obviamente estes serviços tem o seu (algum) valor, o ponto é que o impacto causado pelo crescimento exponencial dessas empresas não pode ser medido de forma imediata. Hoje temos estudos e pesquisas que mostram que o Uber, Lyft e outros tipos de serviços desse tipo pioram o tráfego. Como os governos devem se comportar num ambiente nunca antes visto? Será que esses serviços contribuem realmente para um ambiente mais confortável, sustentável e seguro na cidade?
Houve muitas crises na história da humanidade, muitos períodos de interregno, nos quais as pessoas não sabiam o que fazer, mas elas sempre acharam um caminho. A minha única preocupação é o tempo que levarão para achar o caminho agora. Quantas pessoas se tornarão vítimas até que a solução seja encontrada? - Zygmunt Bauman
Precarização digital
Outro ponto é a precarização do emprego nesse mundo digital. Hoje temos mais de 13 milhões de desempregados no Brasil. Trabalhar fazendo pedidos no Rappi, pode dar uma renda de R$1500 para alguém que precisa urgentemente de dinheiro.
O problema é que esses serviços trabalham como mediadores. Eles não tem vínculo algum com o usuário nem com o entregador. Isso é bom pro negócio, porque possibilita um crescimento rápido a baixo custo, mas é ruim para a ponta que executa, que fica preso num mercado com poucas empresas que podem controlar facilmente o quanto ele pode ganhar.
Outro problema é que por não ter vínculo, eles não precisam se responsabilizar por certos problemas, por exemplo: se você bater o carro porque um motoqueiro da Rappi te fechou em alta velocidade. A responsabilidade não é do serviço, mas do motoqueiro. Você não tem nem como “denunciar” a má conduta se não for um cliente (ter o app instalado e ser cadastrado no sistema).
O que podemos fazer?
Conscientização é o primeiro passo. Estamos num momento crucial de mudança e transformação de valores da sociedade, gerações, tecnologia, modelos de negócio, governos, comportamento, comunicação... Tudo isso influencia a forma sobre como convivemos. Por isso, todos precisam ter mais consciência do que estão criando e principalmente sobre como estão sendo afetados e impactados para estarem vivendo num mundo que vai ficar cada vez mais digitalizado, automatizado, aberto e baseado em dados.
Guia de impacto ético digital - Ethical OS
Em 2018, uma parceria feita entre o Institute of the Future, de Palo Alto, e o Tech and Society Solutions Lab, criaram uma iniciativa chamada Ethical OS. Essa iniciativa fornece gratuitamente alguns materiais para conscientizar empresas e profissionais da área de tecnologia a criarem produtos e serviços mais éticos, conscientes dos riscos e sabendo dos possíveis impactos na sociedade, usuários e comunidades.
O que tem no toolkit criado por eles:
- Um checklist com as 8 zonas de risco para ajudar seu time a considerar e identificar as áreas de riscos mais críticas;
- 14 cenários para incentivar conversas sobre impactos de longo prazo que podem acontecer com os produtos que vocês estejam fazendo agora;
- 7 estratégias para ajudá-los a tomar medidas éticas hoje, que permanecerão no futuro;
Canvas de Ética de Produto
O pessoal da Threebility preparou um Canvas de Ética de Produto. Isso pode ser uma ótima dinâmica para entenderem o impacto ético, mapeando os principais pontos e ajudando a garantir que o time conheça mais do seu produto em relação a ética.
É ideal não apenas o time de produto fazer essa dinâmica, mas expandir para outras esferas, como stakeholders, direção da empresa e outras áreas que podem influenciar a produção de um serviço mais coerente com os princípios éticos.
Conclusão
Eu nem falei aqui sobre privacidade, manipulação de dados, features feitas para controlar, manipular e vender comportamentos de usuários... Também não falei sobre como o marketing influencia muito nesses e outros pontos. Esse assunto é muito extenso e por isso convido que você leia e procure saber mais.
Note que direcionar o produto para um caminho mais coerente com os valores éticos adotados pela sociedade, mantendo a rentabilidade, relevância no mercado e engajamento dos usuários, não é uma tarefa exclusiva do PM. UX Designers, Devs e outros especialistas (pessoas de dados principalmente), também são os responsáveis por promoverem uma evolução de pensamento que vem de baixo para cima.
Outro ponto é que o produto precisa estar alinhado com os valores da empresa. É muito importante que os funcionários de uma empresa a cobrem pelo cumprimento desses valores. Esconder aquela taxinha num calculo maluco não é correto e ético se um dos valores da empresa é transparência. Ter um atendimento ruim, não é coerente se um dos valores da empresa é respeito pelo usuário.
Obviamente ter pessoas no board executivo, que são coerentes e conscientes, ajuda muito. Mas fica difícil quando a empresa se transforma num unicórnio ou tem um crescimento como o Uber teve. Outro problema são empresas com uma cultura plastificada, artificial. Todo mundo posa de bonzinho, as ovelhas ficam alegres por fazer parte de uma empresa incrível. Mas essa é outra história.
Referências:
- Who’s Responsible? The Ethics of the Sharing Economy
- The ethics of digital design
- What is Digital Ethics?: 10 Key Issues Which Will Shape Our Future
- O Rene de Paula Jr vive falando sobre ética nos serviços digitais, sobretudo uso de dados e privacidade
- Uber and the Ethics of Sharing: Exploring the Societal Promises and Responsibilities of the Sharing Economy
- The Sharing Economy Isn’t About Sharing at All
- Estudo da PwC sobre Sharing Economy
- No Brasil em crise profunda, aplicativos como Uber e iFood se tornaram o símbolo dos empregos temporários e mal-remunerados
- Na gig economy, nem todo mundo está sendo Rappi o suficiente
- Leia sobre Mundo Líquido, teoria do Zygmunt Bauman.
- A fluidez do mundo líquido de Zygmunt Bauman
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